Por Markus Vlasits e Guilherme Nizoli, NewCharge Projetos
O crescimento de projetos fotovoltaicos no Brasil tem sido bastante impressionante – durante os últimos 6 anos a capacidade instalada alcançou 10 GW, apesar dos eventuais ‘desafios’ econômicos, que tendem a afligir o país. E embora o Brasil possa apresentar condições quase perfeitas para a geração fotovoltaica centralizada, esse mercado tem sido mais voltado à geração distribuída do que à geração centralizada, tanto que em torno de 65% da capacidade instalada tem sido projetos de GD.
O extraordinário desenvolvimento da GD solar no Brasil pode ser atribuído a vários fatores, entre eles o aumento incessante do preço de energia elétrica, a redução significativa do preço de painéis fotovoltaicos, mas, também, graças à um robusto marco regulatório. Em 2012, a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) decretou a Resolução 482, que permitiu a geradores de energia FV e de outras fontes com potência até 1MW (ca) de conectarem-se à rede elétrica e, caso necessário, injetar seus excedentes de energia. Em essência, a Resolução 482 está baseada no princípio de ‘net metering’, com o qual o usuário de um sistema de GD pode usar a rede como uma ‘bateria virtual’. Graças a esta regra, 100% da energia excedente que é injetada na rede é ‘compensada’ através de um crédito de energia ao usuário do sistema de GD. No entanto, nem todos os usuários enxergarão o valor total da energia injetada como crédito na sua conta de luz. Mas isso não se deve às regras de compensação, mas sim à interpretações divergentes sobre a incidência de ICMS na compensação de energia nos diferentes estados brasileiros.
Vale a pena destacar que em comparação com outros países, a ANEEL tem uma autonomia bastante ampla na hora de decretar regulamentação par ao setor elétrico. Na Alemanha, por exemplo, as regras que governam o uso de energia solar, o chamado EEG (Erneuerbare-Energien-Gesetz), é uma lei decretada pelo Bundestag (o parlamento alemão). No Brasil, a Resolução 482 é um decreto publicada pela ANEEL. A agência tem que submeter todas suas propostas regulatórias à consultas públicas e seguir as diretrizes definidas por lei. Porém, dentro desses limites, a ANEEL tem autonomia para definir as regras do jogo e não tem que submeter seus decretos ao Congresso ou ao governo federal.
Ao longo dos anos, a Resolução 482 passou por várias revisões e mudanças, a mais importante sendo a Resolução 687/2015. Na ocasião, a ANEEL aumentou o tamanho máximo de projetos de GD de 1MW para 5MW. Adicionalmente, essa resolução prevê vários tipos de ‘GD remota’, onde geração e consumo não mais precisam estar localizados no mesmo lugar. Usuários podem gerar energia em um ponto de rede e usar o crédito energético gerado para compensar seu consumo em várias outras localidades, desde que os pontos de geração e consumo estejam localizados dentro da área de atuação da mesma distribuidora de energia elétrica. Essas mudanças regulatórias, juntos com melhoras na viabilidade econômica fez com que a GD decolasse no Brasil. O número de novos projetos conectados à rede foi de 1.400 em 2015 para 210.000 em 2020. De janeiro até agosto de 2021, 191.000 novos projetos foram conectados, o que significa que o número total poderá alcançar, ou até superar 300.000 novas conexões até o final do ano.
A ANEEL sempre tem deixado claro que as regras do GD seriam sujeitas a revisão, dependendo da evolução do setor. E, provavelmente, o crescimento da GD tem até superado as expectativas da agência. Em 2018 a ANEEL lançou uma consulta pública (CP 10) para coletar opiniões do setor elétrico e da sociedade em geral sobre mecanismos e dados para a avaliação dos benefícios e custos da GD ao setor elétrico. Logo ficou claro que as regras de compensação de energia, ou seja, a quantidade de crédito pelo excedente de produção injetado na rede seria o foco da discussão.
No Brasil, como em qualquer outro país, a tarifa de energia é composta por vários componentes. De um lado, há o custo da energia, que por sua vez é composto pelo custo líquido de energia (também chamado de ‘TE’) e os chamados ‘encargos de energia’, cobrindo subsídios para consumidores em localidades remotas, subsídios para consumidores de baixa renda, fundos para projetos de P&D, e outros. Por incrível que pareça, os encargos de energia também incluem aproximadamente R$ 1 bilhão por ano em subsídios para o uso do carvão nacional para geração de energia elétrica. Mas isso é assunto para um outro artigo. Do outro lado, há as taxas de distribuição (também chamadas ‘TUSD’), que por sua vez são compostas pelo chamado ‘Fio A’, que paga pelo usa da rede de transmissão, e o ‘Fio B’, que remunera as distribuidoras de energia elétrica. Também são cobrados encargos de transmissão, relacionados ao transporte de energia, e ainda há a compensação pelas perdas de energia na transmissão e distribuição. Adicionalmente, os estados cobram o ICMS, que varia entre 18% e 32%, e, adicionalmente, o governo federal ainda cobra PIS/COFINS, cuja alíquota está em torno de 5%.
Inicialmente, entidades e empresas do setor fotovoltaico foram levados a acreditar que a ANEEL adotaria uma abordagem analítica, tentando balancear os custos e os benefícios da GD. Afirmações feitas pela agência durante audiências públicas no começo do ano de 2019 indicavam que as novas regras de compensação poderiam ficar entre manter o status-quo e cobrar uma quantidade equivalente ao Fio B.
No entanto, no final de 2019, a ANEEL lançou outra consulta pública (CP 25/2019) para apresentar e coletar comentários em uma proposta regulatória que ela havia preparada ao longo do ano. Para a surpresa do setor solar, a agência apresentou várias opções e recomendou uma proposta radicalmente diferente do que havia sido discutido anteriormente, a chamada ‘Alternativa 5’. Neste cenário, o excedente de energia seria compensado com apenas o equivalente da TE, que na maioria dos casos representa menos de 40% do custo total de energia (sem tributos). Os 60% restantes seriam retidos a título de compensação pelo uso da rede. Conceitualmente falando, isto significaria que a energia gerada e injetada por um sistema de GD voltaria até uma usina de grande porte, usando a capacidade tanto da rede de distribuição (média tensão), como da rede de transmissão (alta tensão). Não precisa de diploma em engenharia elétrica para entender que este cenário seria extremamente improvável. Quase sempre, o excedente de energia produzido por um sistema de GD será absorvido pelos consumidores na sua vizinhança. Para piorar o cenário ainda mais, as novas regras propostas pela ANEEL não seriam apenas aplicadas a novos projetos, mas também a instalações existentes.
A CP 25/2019 causou um intenso debate entre proponentes e céticos da energia solar. O setor da GD adotou o lema ‘taxar o sol não’, enquanto a ABRADEE e outras entidades descreveram a GD solar como um ‘Robin Hood às avessas’. Na visão deles, usuários de GD, a maioria deles sendo empresas e pessoas de média e alta renda, estariam sendo subsidiadas por todos os consumidores, inclusive por consumidores de baixa renda.
O tópico rapidamente entrou na arena política. O presidente declarou-se ser a favor da GD solar, enquanto o Ministério de Economia adotou uma posição mais crítica, argumentando que a Resolução 482 resultaria no desembolso de subsídios implícitos que valiam bilhões de reais. Eventualmente, várias propostas legislativas foram elaboradas pelo Congresso, deixando claro que o futuro da GD não seria decidido pela ANEEL, mas sim pelo parlamento. Ao longo do ano de 2020 a discussão política não avançou muito, devido à pandemia e suas repercussões sociais e econômicas. Ao mesmo tempo, a GD solar alcançou novos recordes. Apesar da pandemia, 2,6 GW de novas instalações foram conectadas à rede durante o ano passado.
Com as discussões continuando ao longo deste ano, eventualmente as propostas legislativas foram consolidadas no PL (‘projeto de lei’) 5829. Após várias rodadas adicionais de negociações, e alguns ajustes de última hora, uma esmagadora maioria dos congressistas aprovaram o PL 5829 em 18 de agosto de 2021. Para efetivar-se, o PL ainda terá que ser aprovado pelo Senado, em seguida, ser encaminhado para a sanção presidencial. Cabe ao presidente aprovar o PL, tornando-o lei, ou mandá-lo de volta ao Congresso para novas deliberação.
Vale destacar que, desde 2019 a ABSOLAR (Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica) tem desempenhado um papel extremamente importante em moldar a opinião pública e o entendimento dos legisladores sobre a GD solar e os benefícios desta para o setor elétrico. Sem sombra de dúvida, as atividades da associação, as múltiplas apresentações, entrevistas, publicações técnicas, sem contar as inúmeras reuniões presenciais em Brasília, foram decisivas para impulsionar o tópico em discussões no Congresso e na sociedade como toda.
O PL 5829 representa um enorme avanço no marco regulatório da geração distribuída, mas também é mais complexo que as resoluções da ANEEL que irá substituir.
Vamos dar uma olhada nas principais mudanças passo a passo –
Year |
2023 |
2024 |
2025 |
2026 |
2027 |
2028 |
2029 |
2030 |
2031 |
Custo do uso da rede* |
4,1% |
8,1% |
12,2% |
16,2% |
20,3% |
24,3% |
27% |
27% |
Regra definida no encontro de contas |
Year |
2023 |
2024 |
2025 |
2026 |
2027 |
2028 |
2029 |
Custo do uso da rede * |
4,1% |
8,1% |
12,2% |
16,2% |
20,3% |
24,3% |
Regra definida no encontro de contas |
* Percentual de TE+TUSD
É importante lembrarmos que, as regras mencionadas acima apenas se aplicarão aos projetos GD ‘on-site', projetos de GD remota com capacidade inferior a 500 kW, além daqueles projetos de geração compartilhada, onde o maior beneficiário recebe menos que 25% do total de energia gerada. Para projetos de GD remotos acima de 500 kW, e demais projetos de geração compartilhada, as seguintes regras se aplicam –
Além dessas novas regras de compensação de energia, o PL 5829 também traz várias outras mudanças importantes –
Em síntese, o PL5829 representa uma melhoria real e muito significativa para a GD solar e a geração distribuída em geral no Brasil. Ele também marca o começo de um novo capítulo para a GD no Brasil, facilitando o crescimento futuro e o amadurecimento do setor. Mas, como sempre, existem algumas dúvidas e pontos menos favoráveis, que merecem ser destacados –
Porém uma coisa é certa – os 12 meses de transição entre a Resolução 482 e essa nova lei representa um avanço, não somente para o setor de GD, mas para o setor elétrico como um todo. Vale a pena lembrar que nesse momento, o Brasil enfrenta uma das mais severas crises hídricas, o que aumenta cada vez mais o risco de racionamento de energia. Por isto, cada MWh de energia produzido por sistemas de GD será muito bem-vindo e contribuirá para postergar o esgotamento das reservas hídricas disponíveis para geração de energia.
Markus is the managing director of NewCharge Energy, an engineering and project development company, focused on energy storage and PV energy and headquartered in Florianópolis. Markus has a long history in the photovoltaic sector - he was vice president of Q-Cells in Germany, executive director of Yingli Green Energy of Brazil and co-founder and commercial director of Faro Energy, an investment company focused on photovoltaic projects for commercial and industrial clients. He also coordinates the energy storage working group at ABSOLAR, Brazil's leading solar association. He is Austrian and has lived in Brazil since 2012.
Guilherme Nizoli is Electrical Engineer at Newcharge, where he supports engineering solutions, business modeling and strategical consulting, focused on storage. He has previous regulatory experience on the Brazilian electricity sector, having contributed in many regulation improvement processes on storage, utility-scale and distributed generation. He has also participated in the discussion about the distributed generation legal framework, that it is under analysis at the senate.